Uma típica cena suburbana desenhada por Jano.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Inteligência artificial

“coisa é o nome do homem”

(Arnaldo Antunes)


Esta foi a gota que faltava: banheiros, quartos, salas, cozinhas e edifícios inteiros agora são criados para serem inteligentes. E, levando-se em conta que a moda chegou para ficar, talvez essas coisas, apesar de inanimadas, sejam as únicas “criaturas” realmente lúcidas do planeta. Mais ainda: se as previsões estiverem certas, elas serão as sábias mentes do futuro. Assim, uma simples bancada com pias em um banheiro de shopping, por exemplo, pode ser o esboço de um encontro de intelectuais ou a reunião do conselho universitário de amanhã. Convém tratar as pias com respeito.


O discurso ecológico tomou conta dos mais variados espaços de informação, discussão e formação. Qualquer um que ouse levantar a voz para balbuciar um mínimo “porém” correrá o risco de ir para a fogueira, ainda que a sentença prejudica a camada de ozônio e aumente o efeito estufa. No entanto, valeria questionar se tal discurso de ecologicamente correto vem acompanhado de uma prática similar. Ou a práxis engajada foi para o chão como os muros do passado e o que vale mesmo é só o exercício de retórica?


Se um homem – sem dúvida inteligentíssimo! – teve de criar uma forma mecânica para evitar o desperdício de água provocado pelo mau hábito de milhões de outros seres humanos, é porque algo está errado. Mas o quê? Certamente, não é a torneira, já que ela continua trabalhando com o mesmo mecanismo de abrir e fechar. Logo, a raiz do problema está no homem e na sua falta de consciência e de cuidado para com o planeta.


O que o discurso aparentemente engajado esconde é uma nova forma de alienação. Não há libertação quando apenas um pensa para que todos os outros executem. Atualmente, vence a concorrência quem oferece o melhor serviço, ou seja, oferece a solução mais fácil. Todavia, não há aprendizado quando as respostas já estão prontas, há adestramento. Engajar-se é querer encontrar novas respostas.


A velha recomendação “feche bem a torneira, apague a luz e feche a porta” colocava os problemas, porque buscava criar responsabilidades. Agora... bem... torneiras, lâmpadas e portas já estão bem crescidinhas para se virarem sozinhas.

Márcio Hilário.

27/05/2010

domingo, 9 de maio de 2010

Realidade e texto sob censura

Hoje, revi o filme "Quem quer ser um milionário?" e lembrei-me de que a minha resenha sobre o filme não foi aceita pela site "Guia da Semana". Mas, como agora tenho meu próprio blogue, posso publicá-lo. E assistam ao filme: é o subúrbio na tela.


“Quem quer dinheiroooo?”

É... para quem anda se dizendo cansado de ver o cinema brasileiro transformar marginais em heróis e querer jogar toda a culpa nas costas dos “homens de bem”, aqui vai a má notícia: esse olhar não é uma exclusividade tupiniquim! É impossível assistir a “Quem quer ser um milionário?” sem identificar familiaridades nas trajetórias dos personagens Jamal e Salim com a dupla Dadinho e Bené, ou mesmo Acerola e Laranjinha. Será que já estamos exportando a “estética da miséria” ou finalmente a Academia norte-americana deixou de ser impassível à “estática miséria” de 2/3 do mundo? Curioso é que essa mesma Academia fechara os olhos antes para o nosso “Cidade de Deus”. Claro, “O senhor dos anéis” era muito mais interessante!

Bem, de qualquer forma, o filme é maravilhoso e certamente convidará o espectador a reflexões mais profundas em relação aos valores que regem o mundo em que vivemos. Sem querer contar a história, mas não podendo fugir ao comentário, escolhi como emblemática a seguinte cena: O menino Jamal está trancado em um banheiro de madeira ao ar livre, tentando defecar por um buraco que fica no chão e por onde se despejam as fezes numa poça a alguns metros abaixo. Pela fresta, ele vê a chegada do maior ídolo do cinema indiano ao seu bairro. Com a foto do astro nas mãos, Jamal tenta arrombar a porta, mas não consegue. Decide, então, sair pelo mesmo buraco das fezes, mergulhando na poça e ficando com o corpo completamente sujo. Vendo-se “livre”, o menino corre para pedir-lhe um autógrafo. Obviamente, a multidão abre caminho para aquele serzinho escatológico, que, enfim, consegue alcançar sua meta.

Eis a síntese, não só do filme, mas do que é o casamento miséria/alienação no mundo globalizado: os pobres estão literalmente afundados nas fezes e dando pulos e mais pulos de alegria por existirem seus ídolos midiáticos, além da esperança de que a sorte grande possa sair do fundo baú da felicidade, livrando-os da marginalidade.

Márcio Hilário

(05/03/09)