Uma típica cena suburbana desenhada por Jano.

terça-feira, 29 de junho de 2010

Disputa entre cão e carro


Disputa entre cão e carro

Quem é de lá conhece esta cena: a vizinhança achando o melhor lugar para as cadeiras na praia das calçadas, a vida alheia desfilando diante dos olhos das senhoras ávidas por novidades e as crianças desafiando os anjos da guarda dos limites do meio fio. Sempre deitado ao lado de alguém, apesar de quase invisível a todos, lá está bom e velho vira-lata, fiel amigo do homem e feroz inimigo das calotas. É nesse ambiente de pacato tititi que se trava a disputa mais espetacularmente simbólica da nossa identidade cotidiana.


Logo que escolhera dobrar a esquina e tomar aquela rua qualquer ali mesmo, o motorista do carro mal sabia que fazia um mal: colocou frente a frente bigodes e pára-choques, dentes e rodas, espumando, assim, a baba raivosa de um xenófobo que recebe a aditivada visita de um imigrante. Aviltado, talvez, na sua sagrada privacidade canina, reage o valente pit-lata partindo para cima do sacrílego automóvel.


Todo o repertório de ataque é usado de uma só vez: corre-late-baba-rosna-uiva-mordeonada. E não adianta fugir, porque quanto mais o tentar o carro, mais rápido corre-late-baba-rosna-uiva-mordeonada o cão. Epopéia essa que só termina de duas maneiras: uma honrosa e a outra humilhante para o cão. Na primeira, como a rua acaba e o carro dobra a outra esquina e segue seu caminho, o cão pode voltar para o seu cantinho anônimo com a sua honra preservada. Na segunda, humilha-se profundamente o cão por não saber o que fazer quando o carro decide de súbito... parar!


Pois bem, eis a consagração do espetáculo: importa muito mais a aparência das coisas do que a sua essência. A falta de propósito de uma atitude ou de uma postura fica bem mais disfarçada quando o foco do problema passa a ser o outro. E única diferença entre a alienação do cachorro e a nossa canina postura diante da existência é fato de ser menos pior correr em vão por uma rua do subúrbio do que vagar sem propósito por toda a vida.


Márcio Hilário

(24-06-2010)

sexta-feira, 18 de junho de 2010

E agora sem José... Saramago?

José Saramago

Gostaria, sinceramente, de ter as palavras mais bonitas, a forma mais literária e a linguagem mais poética para escrever uma justa homenagem a José Saramago. No entanto, as lágrimas me cegam. Choro não pela morte do escritor, que permanecerá vivo em cada página por ele escrita, mas sim pela perda de um referencial que aprendi a ver e ter ali tão concreto, tão tangível, tão encarnado... tão aqui. Ao seguir além, Saramago foi definitivamente ocupar um assento que já era seu, ao lado de todos os utopistas os quais, com palavras e ações, definiram meu caráter, minha luta, minha militância. No entanto, essa ausência do ser vivente, do homem de carne e osso que interpretava e questionava cada nova insanidade da nossa vida cotidiana, deixa em mim um grande vazio. Sou a criança que acorda no meio da noite e se descobre sozinha em casa.

Nas suas últimas críticas à efêmera forma de comunicação dos nossos dias, Saramago deu um sentido ainda mais maravilhoso para a minha vida. Se em algum momento, por algum ínfimo motivo, numa fração mínima de tempo, eu cogitei a possibilidade de que um dia eu poderia me arrepender de ter escolhido a área de Letras, ou mesmo se duvidei da importância ou da utilidade daquilo que estudo, certamente isso foi antes de vê-lo dizer o seguinte:

“Se o leitor, o leitor de livros, aquele que gosta de ler, não se limitar àquilo que se faz agora, se ele andar para trás, se ele começar do princípio, se ele pode ler os primitivos, e os grandes cronistas, e depois os grandes poetas, a língua passa a ser mais do que um mero instrumento de comunicação. Transforma-se numa, digamos, mina inesgotável de beleza e de valor.”

Obrigado, mestre.

Márcio Hilário

(18/06/2010)