Uma típica cena suburbana desenhada por Jano.

domingo, 14 de novembro de 2010

Peixe pequeno: calado já tá errado!

A primeira coisa que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos.

(Pe. Antônio Vieira. “Sermão de Sto. Antônio aos peixes".)


Nunca soube o nome dela, nem seu rosto foi tão vago como agora, mas a cena é mais inesquecível do que antes fora em mim.


Estávamos na Universidade de São Paulo (USP) para o Encontro Regional dos Estudantes de Letras (EREL). Pois é, cheios de siglas, códigos e bairrismos: disputando entre nós e com os outros quem estudava na melhor instituição, quem morava no melhor lugar, quem conseguia ser mais idiota.


A praxe desses eventos é que nos alojemos nas próprias salas de aula, em colchonetes e barracas, de acordo com o potencial financeiro de cada um. A comissão organizadora consegue uns quartos para si e quem tem grana tira onde de turista. Ou seja, é um microcosmos da nossa realidade social.


Só que nós havíamos sido alojados fora da USP, em um colégio que nem chuveiro tinha, e andávamos muitíssimo para estar nos locais onde aconteciam as atividades. E foi justamente depois de um dia inteiro de longas caminhadas que voltamos ao colégio para mudarmos de roupa e regressarmos ao campus. Era lá que estava ela, invisível e silenciosa, sentada à porta de uma das salas.


Passado um longo tempo, aquele imobilismo atiçou a curiosidade investigativa de alguém: a porta da sala foi trancada, deixando lá dentro as roupas e os objetos pessoais daquela jovem silenciosa. Mobilização. Cadê a chave? Quem trancou? Sacanagem. Nada. Solidariedade. Quer uma roupa emprestada? Usa a minha toalha e toma um banho? Não, obrigada! Dignidade ferida. Eram as suas coisas, puxa vida! Vai tomar um banho sim. Vamos lá. Levanta a cabeça. Vamos para a festa. Esboço de alegria em tão triste rosto.


Quem diria, aquela menina da periferia de São Paulo, da Cohab, com aquele povo do novelístico Rio de Janeiro, que lhe estendeu a mão e foi tão solidário com ela. Que legal. Parecia tão ali, tão acolhida, tão afagada, tão cercada de amigos, parecia tão gente!


Quando finalmente todos chegaram à tal festa na USP, cada novo amigo seguiu seu caminho, tomou seu rumo e sumiu. Mas certamente lavaram para cada canto do evento a história que provava a sua grandeza pessoal, na riqueza de seu gesto. Alguns deveriam até apontar para a Cinderela como uma prova viva do seu relato. E lá estava ela, silenciosa e sem sapatinhos de cristal, mas feliz, sabe-se lá por que.


No entanto, antes da meia noite, as jovens patricinhas cariocas que haviam protegido suas coisas, mas ignorado às da menina naquela sala, apareceram indignadas, com dedo em riste e cuspindo marimbondos. Cientes de que naquele conto de fadas lhes caberia o injusto papel de bruxas, trataram logo de desfazer o encanto da Gata Borralheira da Cohab: aquilo era uma palhaçada, não precisava fazer aquele teatrinho todo, ela tinha que tomar vergonha na cara.


E assim acabou mais uma história da Cinderela da periferia. Lá estava ela, naquele ambiente inóspito, anônima, sangrando em sua dignidade, transbordando em lágrimas... e, acima de tudo, incapaz de esboçar nem sequer uma mínima reação, nem mesmo um mísero grito de revolta ou de dor. Errada, apesar do mais completo silêncio.


Márcio Hilário.

14-11-2010

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Em terra de cegos, quem não é cego cega


“70% dos cidadãos votam do mesmo modo que respiram; sem saber por que nem o que. Votam como vão à festa da Penha, - por divertimento. A Constituição é para eles uma coisa inteiramente desconhecida. Estão prontos para tudo: uma revolução ou um golpe de Estado.”

(Machado de Assis)



Na crônica de 15 de agosto de 1876 (isso mesmo, lá no século XIX!!!), o já grande Machadinho, olhando para os números do recenseamento do império, ficava atônito com o obsceno índice de analfabetismo: apenas 30 % da população brasileira tinha acesso às informações escritas. A respeito do que não se sabe, não se reflete. Sem reflexão, não tem discussão, questionamento, proposição. Com isso, nada de transformação.

Para nosso escritor oitocentista, não saber ler é estar impedido de ser cidadão, já que a exigência básica do exercício da cidadania – que implica direitos e deveres – é a participação. Dentro dessa lógica e na mesma crônica, ele afirma que um governante brasileiro do seu tempo, ao proclamar-se um representante do povo, deveria na verdade dizer em alto e bom som: venho aqui em nome dos 30% a quem, de fato, represento!

Segundo as atuais taxas de alfabetização, o Brasil inverteu aqueles números sinistros e já pode se gabar dos seus mais de 90% de alfabetizados. Apesar disso, o sono eterno do Bruxo do Cosme Velho está longe de estar tranqüilo. Mudaram os números, mas surgiram com eles novos tipos de analfabetos. Aliás, sobre esse tema, o senso comum adora hastear a sua bandeira mais preconceituosa: analfabeto é sempre o pobre que vive nas periferias e que tem baixa escolaridade.

O lema desse estandarte é bem simples: saber ler é pouco; não basta reconhecer as letras e lidar com composições textuais básicas, é preciso ter a capacidade de compreender e interpretar das unidades médias às mais complexas, como textos científicos e acadêmicos. Enfim, o vilão da democracia participativa agora é o analfabeto funcional.

Penso que, em termos de cidadania, esse raciocínio seja, além de preconceituoso, equivocado, discriminatório e segregador. Ele culpabiliza o pobre e isenta as elites de praticarem uma outra e pior modalidade: como diria Brecht, o analfabetismo político.

Se hoje no Brasil todos podem votar, inclusive os completamente analfabetos, o que justifica um número de abstenção de eleitores superior a 20% nas últimas eleições presidenciais? Em números absolutos, isso chega perto de 30 milhões de pessoas, o que equivale a três vezes a população de Portugal, ou ainda, quase a totalidade das populações de Uruguai, Paraguai, Bolívia e Equador juntas.

Não bastasse o alheamento expresso por essas ausências, o contexto fica ainda pior quando nos damos conta de que nem todos os votantes exerceram no voto uma participação consciente. Ou seja, esses eleitores foram às urnas e cumpriram seu dever cívico, mas, na verdade, não estavam nem aí para o contexto político. E esse contingente é incalculável, pois não tem registro nem figura nas estatísticas, visto que está oculto e protegido pelo véu inefável da auto-alienação. É, portanto, a mais plena das abstenções e, por conseguinte, o mais profundo analfabetismo político, porque não se manifesta através de uma negação de direitos ou por meio de uma simples ausência, mas se revela pelo mais completo abandono do processo político como um todo. Nele o eleitor escolhe um candidato com a mesma indiferença criteriosa de quem pega um salgadinho numa bandeja sortida de festa só para não fazer desfeita: morde um pedacinho, enrola o resto no guardanapo, põe no cantinho da mesa e esquece!

E por falar em festa: enquanto o domingão legal e os bares dos novos pólos gastronômicos da cidade ficam cada vez mais lotados de pessoas engajadas na futilidade dos programas televisivos, os grandes momentos históricos continuam vagando anonimamente pelas ruas da indiferença.

Márcio Hilário.

03-11-2010


PS: Alguém já se deu conta de que, no último domingo (31-10-2010), foi eleita a primeira mulher para a Presidência da República Federativa do Brasil?