Uma típica cena suburbana desenhada por Jano.

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Ligamento cruzado



Detesto autoajuda. Mas não é que não goste ou que tenha algum enfado apenas, não suporto, tenho verdadeira ojeriza, asco, nojo... vomitei! E explico o porquê, meu amigo leitor, só para você parar com essa cara de que detesta textos escatológicos: considero insuportavelmente equivocada e traiçoeiramente nefasta a ideia de querer responsabilizar única e exclusivamente o indivíduo pela situação adversa ou inversa na qual ele se encontre. É claro que um pensamento negativo não ajuda em nada, mas, na prática pura e simples do mundo real e concreto, ele gera o mesmo resultado de qualquer outro tipo de pensamento: nenhum. O pensamento é apenas uma fabulação abstrata, que pode até motivar transformações, mas, para que elas ocorram, ele precisa se transformar em ações.

Deixe-me explicar o motivo dessa minha nova questão para que você não pense que eu esteja sofrendo de algum tipo de reação adversa após a leitura acidental de um texto do Mago Coelho. No último mês, passei pela experiência de, após uma cirurgia no joelho direito, ter de reaprender a andar depois dos trinta anos. Calma! Não se trata aqui de uma história de superação, pois assim cairíamos na armadilha da promoção da autoajuda, mas certamente tem a ver com uma nova perspectivação da realidade. Obviamente, não quero dizer que passei a dar mais valor às pequenas coisas porque as perdi temporariamente. Acho isso tão lamentável e escroto quanto aquela prática de levar crianças ricas para conhecerem orfanatos a fim de, com isso, elas passarem a dar mais valor à família e ao que têm em casa. Ou seja, você vê a dor do outro e dá graças a Deus por não ter de senti-la. Uma aula de solidariedade burguesa! Não é isso! Desse caminho eu estou fora! Mas quero retomar minha linha de raciocínio considerando duas dimensões sobre essa questão.

A primeira delas é o aspecto individual sim e alguns poderão até confundir com autoajuda, embora eu negue isso até o último dos meus dias. Ocorre que observando a progressão dos fatos recentes pelos quais passei e os objetos com que precisei contar e com os quais convivi, como cama, cadeira de rodas e muletas, entendi que nossas maiores necessidades são altamente mutáveis a cada dia e que cada etapa ganha e perde seu valor. Machado de Assis falou sobre isso no conto “O espelho”, quando disse que a alma exterior do ser humano, ou seja, aquilo que o completa existencialmente, muda de forma e muda de figura constantemente. Por isso, quando eu era criança, achava que um brinquedo era muito mais legal do que acho hoje, assim como há alguns dias atrás ter conseguido ir ao banheiro sozinho foi muito mais incrível do que é agora. Aliás, as barras de apoio no vaso e no chuveiro já estão quase voltando a ser invisíveis de novo.

É aí que entra a segunda dimensão do que eu aprendi: a invisibilidade. Percebi que deficiente mesmo é o modo como a sociedade enxerga o deficiente. Desculpe o uso do termo politicamente incorreto, mas precisei dele para criar o trocadilho! Como portador temporário de uma necessidade especial, não aprendi a dar mais valor à minha capacidade motora, desenvolvi sim foi uma profunda indignação que se soma a outras tantas que eu já acumulo e que no fundo têm sempre o mesmo pano de fundo: a exclusão. Ela é mais do que um princípio, é um valor cultivado, disseminado e perpetuado em nossa sociedade. Se o mundo fosse pensado numa perspectiva inclusiva, ele seria acessível para todos. Todos! Seus corredores seriam largos, suas portas seriam mais amplas, seu chão seria menos irregular e teríamos rampas menos íngremes e mais elevadores. No entanto, como os arquitetos do mundo se consideram os eficientes, todos os caminhos continuarão estreitos e suas portas permanecerão fechadas.

Enfim, o que verdadeiramente importa na vida de alguém não é o pensamento positivo, mas o pensamento coletivo. Quem tem de mudar de atitude diante da vida não é o chamado deficiente, mas o que se acha eficiente. O que de fato precisamos, meu caro Coelho, é de menos autoajuda e de mais cidadania.


Márcio Hilário
25-04-2013

4 comentários:

  1. Querido amigo Márcio, fico muito feliz em ler suas palavras, e, mesmo sabendo-me incapaz de equiparar-me a texto tão bem escrito, ouso completá-lo. Para isso não usarei palavras tão contundentes, mas sim, minha experiência pessoal de "deficiente", sem nenhum quê de auto-ajuda ou comiseração, coisas que, quem me conhece, sabe que abomino! Concordo que a sociedade precisa enxergar o deficiente, suas dificuldades e necessidades especiais, mas para que isso ocorra, o deficiente precisa parar de se esconder, ter vergonha de si e começar a correr atras do que precisa. Infelizmente as coisas no Brasil só acontecem pra quem incomoda, faz barulho, se faz notar. Temos que mostrar que deficientes são nossos políticos e governantes, aqueles que têm trabalho a cumprir e não o fazem. Eu? Fazendo tudo o que faço numa cadeira de rodas? Deficiente? Eu e todos que sabemos, permanente ou temporariamente, como enfrentar obstáculos invisíveis para a maioria, somos é extremamente EFICIENTES!!! Bem vindo ao clube! Bjo.

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  2. Crizinha, perfeito!!! Confesso que pensei muito em você a cada dificuldade que enfrentei. Algumas coisas que me pareciam difíceis à primeira vista foram logo recolocadas na esfera do possível. Você é um grande exemplo pra mim em tudo - existencialmente, pessoalmente, profissionalmente etc -, pois consegue colocar o gosto pela vida num grau tão elevado que chega a ser contagiante. Ninguém ao seu redor fica imune à sua energia!!! rsrsrs... E foi justamente por lembrar dessa sua força que eu comecei a ficar puto com cada pedra colocada no caminho. Aqui no Rio, então, as malditas pedras portuguesas em calçadas intrasitáveis! Foi aí que eu vi que a tal acessibilidade é só discurso: um cara projeta uma rampa num ângulo tão impossível que nem o Hércules seria capaz de subir. Esse é o ponto que quis colocar no meu texto: a compaixão no sentido etimológico, sabe, aquele de sentir a dor do outro na própria pele mesmo. E esse é um conceito mais do que necessário para todos nós. Essa tem de ser a nossa luta diária!!! Estamos juntos nessa!!! bjs.

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    1. Amigo, percebi seu ponto de vista, e acho que nossos comentários são complementares. Concordo que devemos nos unir para transformar a sociedade, mas também acredito que precisamos saber que tudo o que um dia se apresenta na esfera coletiva se inicia na esfera individual. Por isso, cabe aos que temos uma visão diferenciada do assunto, propagar essa visão diariamente, angariando cada vez mais simpatizantes para a causa! Nosso papel de educadores, mesmo que em diferentes áreas, é esse, certamente. Estamos juntos e ainda vamos fazer muito barulho! rsrsrs. Bjo.

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