Uma típica cena suburbana desenhada por Jano.

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Deixa ver se eu entendi direito



Recebi hoje de manhã mais um convite para lecionar – só na última semana foram sete (conta de mentiroso, né?). Expliquei educadamente que não poderia aceitar a proposta, visto que assumi outros compromissos profissionais que me impedem de realizar as atividades concomitantemente. Dito isso, o diálogo logo se encaminhou para seu desfecho, cumprindo todos os ritos formais das despedidas telefônicas. No entanto, penso agora que poderia ter continuado de outro modo:

― Ok, então! Deixa eu desligar, porque preciso correr atrás de outro professor...

― Outro professor? Como assim, meu caro! Para o meu lugar???... Não... não importa se tecnicamente não era o meu lugar, mas poderia ser. Eu sou o mais qualificado para isso, você mesmo disse, e ralei muito pra chegar até aqui, tá? Perdi noites e mais noites de sono estudando, nunca fiquei reprovado na escola, passei num vestibular concorridíssimo para uma das melhores universidades do país, onde cursei bacharelado, licenciatura, mestrado e doutorado, para agora um Zé Ninguém como o senhor ter a cara de pau de dizer que pode existir alguém que aceite fazer o que eu não quis???

― Peraí, peraí! Deixa ver se eu entendi direito: o senhor não quer aceitar a vaga que lhe oferecemos, mas também não quer que outra pessoa aceite. Sei. Então, a sua proposta é que fiquemos sem professor e pronto?!

― É isso mesmo: já que eu não quis, também não quero que ninguém queira!!!

― É... eu acho justo alguém querer algo! Eu, por exemplo, quero uma coisa, sabe o quê? Eu quero que o senhor vá à... tu-tu-tu-tu...

Se esse diálogo tivesse ocorrido de fato, eu desligaria o telefone logo que percebesse a entonação da crase. No entanto, para a minha felicidade, sei que ele é para mim completamente inverossímil, porque entendo que meu esforço pessoal e minha trajetória acadêmica não me colocam acima do bem e do mal. Existe um compromisso ético e cidadão que me faz compreender que, se não posso ajudar, devo ao menos não atrapalhar. Infelizmente, algumas categorias profissionais forjadas nas ideologias oligárquicas e racistas do século XIX não pensam assim e acham feio tudo aquilo que não lhes é espelho. Defensores de um discurso meritocrático com laivos de narcisismo, acreditam ter conquistado o direito de hostilizar àqueles que lhes ameaçam o trono. É uma pena! Eles não estão entendendo nada... nada... absolutamente nada!

Márcio Hilário
29-08-2013